No Capítulo 1, definimos "escopo" como o conjunto de regras que dita a forma com que o Motor poderá buscar e eventualmente localizar variáveis através de seus identificadores, tanto no Escopo atual quanto nos Escopos aninhados que este possa estar inserido.
Existem dois modelos principais para a definição de funcionamento do escopo. O primeiro e mais comum, utilizado pela grande maioria das linguagens de programação, é chamado de Escopo Léxico, e vamos examiná-lo em profundidade. O outro modelo, que ainda é utilizado em algumas linguagens como Bash scripting e alguns modos de Perl, é chamado de Escopo Dinâmico.
Escopo Dinâmico é tratado no Apêndice A. Menciono esta informação aqui apenas para definir um contraste em relação ao Escopo Léxico, que é o modelo utilizado pelo JavaScript.
Conforme discutimos no Capítulo 1, a primeira etapa da compilação de linguagens tradicionais é chamada de Análise Léxica (ou Tokenização). Caso não se lembre, o processo de Análise Léxica examina uma sequência de caractéres do código fonte e atribui um significado semântico para estes símbolos (tokens) como resultado de uma análise stateful.
Este é o conceito que provê as bases para compreensão do que é o Escopo Léxico e a origem do seu nome.
Para uma definição de certa forma redundante, o Escopo Léxico é o escopo definido durante a etapa de Análise Léxica. Em outras palavras, o Escopo Léxico baseia-se no local onde variáveis e blocos de escopo são criados por você durante a escrita do código, portanto (normalmente) já definidos no momento que o analisador léxico processa seu código.
Nota: Veremos em alguns instantes que existem formas de enganar o Escopo Léxico, e assim sendo modificá-lo após sua passagem pelo analisador léxico, mas isso é, de certa forma, mal visto. É considerado boa pratica tratar o escopo léxico como, de fato, léxico, e portanto inteiramente associado ao momento em que foi definido pelo autor do código.
Consideremos o seguinte bloco de código:
function foo(a) {
var b = a * 2;
function bar(c) {
console.log( a, b, c );
}
bar(b * 3);
}
foo( 2 ); // 2 4 12
Existem três escopos distintos neste exemplo de código. Talvez facilite pensar neles como bolhas dentro umas das outras.
Bolha 1 representa o escopo global, e possui apenas um identificador: foo
.
Bolha 2 representa o escopo de foo
, que por sua vez possui três identificadores: a
, bar
e b
.
Bolha 3 representa o escopo de bar
, que possui apenas um identificador: c
.
Estas bolhas são definidas pelo local onde o escopo foi definido, cada um deles aninhado com outro e assim por diante. No próximo capítulo, vamos discutir diferentes unidades de escopo, mas, por ora, vamos assumir que cada função cria uma nova bolha de escopo.
A bolha de bar
está contida na bolha de foo
, porque (e somente por isso) foi o local que optamos por declarar a função bar
.
Observe que estas bolhas são estritamente aninhadas. Não estamos falando de um Diagrama de Venn, onde as fronteiras (dos conjuntos matemáticos) podem ser atravessadas (para definição de interseções). Em outras palavras, e diferente dos conjuntos, não é possível que a bolha de escopo de uma função esteja presente simultaneamente em duas outras bolhas de escopo, assim como não é possível que uma mesma função seja declarada parte em uma função e parte em outra.
A estrutura e a relação de posicionamento destas bolhas de escopo descreve para o Motor todos os locais nos quais deve consultar para localizar um identificador.
No trecho de código acima, o Motor executa a instrução console.log(..)
e vai em busca das três variáveis referenciadas a
, b
e c
. Ele inicia com o escopo mais interno, o escopo da função bar
. Não encontrará a
por lá, então sobe um nível para a bolha de escopo mais próxima, o escopo de foo(..)
. Lá ele localiza a
, e utiliza este a
. A mesma coisa ocorre com b
. Porém, no caso de c
, ele localiza dentro de bar(..)
.
Caso houvesse um c
definido em bar(..)
e outro em foo(..)
, a instrução console.log(..)
teria localizado e utilizado o c
definido em bar(..)
e nunca chegaria até o valor definido em foo(..)
.
A consulta de escopo se encerra no momento que uma ocorrência é localizada. Um mesmo identificador pode ser definido em diferentes camadas de escopo aninhadas, o que é chamado de "sombreamento" (shadowing -- o identificador interno "põe sombra" sobre o identificador externo). Independente do sombreamento, a consulta de escopo sempre se inicia no escopo mais próximo do ponto de execução atual, e segue seu caminho para fora/cima até a localização de uma ocorrência, quando se encerra.
Nota: Variáveis globais tornam-se automaticamente propriedades do objeto global (window
nos navegadores, etc.), portanto é possível referenciar uma variável global de forma direta através de seu nome léxico, mas também de forma indireta ao referenciar uma propriedade do objeto global.
window.a
Esta técnica garante o acesso a uma variável global que não poderia ser acessada por conta de um eventual sombreamento. Entretanto, variáveis não-globais e que foram sombreadas não podem ser acessadas.
Não importa o local onde uma função é invocada, ou até mesmo como é invocada, seu escopo léxico será definido apenas pelo local onde a função foi declarada.
O processo de consulta ao escopo léxico ocorre apenas em identificadores de primeira classe, como a
, b
e c
. Se você tivesse uma referência para foo.bar.baz
em um trecho de código, ocorreria uma consulta ao escopo léxico para localizar o identificador foo
, mas no momento que esta variável é localizada, regras de acesso à propriedades de objetos assumem o comando para resolução das propriedades bar
e baz
, respectivamente.
Se o escopo léxico é de fato definido apenas pelo local onde uma função é declarada e este local é escolhido no momento da escrita do código, como pode haver uma maneira de "modificar" (ou trapacear) o escopo léxico em tempo de execução?
JavaScript possui dois mecanismos para isso. Ambos são vistos como má prática e igualmente (e amplamente!) desencorajados pela comunidade de modo geral, embora os argumentos que sustentam esta opinião normalmente não trazem consigo o ponto mais relevante: trapacear o escopo léxico leva a um pior desempenho.
Antes de explicar a questão da performance, porém, vamos olhar a forma com que estes dois mecanismos funcionam.
A função eval(..)
em JavaScript recebe uma string como argumento e trata o conteúdo desta string como se tivesse de fato sido programado pelo autor do código naquele ponto do programa. Em outras palavras, você pode gerar código dinamicamente dentro do seu programa e executar este código como se estivesse lá desde o momento da programação.
Colocando desta forma, deve estar claro como eval(..)
permite a você modificar o ambiente do escopo léxico ao trapacear e portanto fingir que aquilo que foi gerado dinamicamente estava lá desde o momento da escrita do código.
Durante a execução das linhas que sucedem a chamada para eval(..)
, o Motor não vai "saber" ou "se importar" se o código em questão foi interpretado dinamicamente e portanto modificou o ambiente do escopo léxico. O Motor vai seguir efetuando suas consultas ao escopo léxico da mesma forma de sempre.
Considere o código a seguir:
function foo(str, a) {
eval( str ); // trapaça!
console.log( a, b );
}
var b = 2;
foo( "var b = 3;", 1 ); // 1, 3
A string "var b = 3;"
é tratada, naquele ponto onde eval(..)
é chamado, como um código que esteve lá desde o princípio. Pelo fato deste código declarar uma nova variável b
, ele modifica o atual escopo léxico de foo(..)
. O que ocorre, como mencionado acima, é que este código literalmente cria a variável b
dentro de foo(..)
, o que acaba por sombrear a variável b
que foi declarada no escopo externo (neste caso, o global).
Quando a chamada para console.log(..)
ocorre, são encontradas tanto a
quanto b
no escopo de foo(..)
, e portanto nunca a variável b
externa. Sendo assim, imprimimos "1, 3" em vez de "1, 2" como normalmente ocorreria.
Nota: Neste exemplo, por questões de simplificação, a string de "código" que interpretamos possui um valor fixo, mas poderia facilmente ter sido gerada dinamicamente a partir de fragmentos obtidos pela lógica do seu programa. eval(..)
é normalmente utilizada para executar código gerado dinamicamente, afinal não há qualquer benefício em interpretar dinamicamente um trecho de código estático a partir de uma string se você pode adicionar este mesmo trecho no momento da escrita do código.
Por padrão, se uma string de código executada via eval(..)
possui uma ou mais declarações (seja de variáveis ou funções), esta ação modifica o escopo léxico no qual esta chamada para eval(..)
se encontra. Tecnicamente, eval(..)
pode ser invocada "indiretamente" por meio de vários truques (os quais vão além da nossa discussão), o que faz com que seja executada no contexto do escopo global, e assim sendo, modificando-o. Mas de qualquer maneira, eval(..)
pode em tempo de execução modificar um escopo léxico definido durante a escrita do código.
Note: Quando utilizada em um programa em Modo estrito (strict mode), eval(..)
opera em seu próprio escopo léxico, o que significa que as declarações efetuadas dentro de eval()
não modificam o escopo superior.
function foo(str) {
"use strict";
eval( str );
console.log( a ); // ReferenceError: a is not defined
}
foo( "var a = 2" );
Javascript provê outras maneiras de se obter resultados similares aos de eval(..)
. setTimeout(..)
e setInterval(..)
podem receber uma string como primeiro argumento, conteúdo este que será interpretado por eval(..)
como o código de uma função gerada dinamicamente. Isto é um comportamento velho, legado, e desaconselhado há muito tempo. Não faça isso!
O construtor de função new Function(..)
, de forma similar, recebe uma string de código como seu último argumento para torná-la uma função gerada dinamicamente -- o(s) primeiro(s) argumento(s), se existir(em), nomeia(m) o(s) parâmetro(s) da nova função. Ainda assim, isso deve ser evitado em seu código.
Os casos de uso para geração dinâmica de código são incrivelmente raros, visto que as perdas de performance quase nunca tornam esta prática vantajosa.
A outra funcionalidade mal vista (e agora desaconselhada!) em JavaScript e com a qual se pode trapacear o escopo léxico é a palavra-chave with
. Existem muitas maneiras válidas de se explicar with
, mas vou escolher explicar sob a óptica de como este mecanismo interage e afeta o escopo léxico.
with
é comumente definido como um "atalho" para a criação de diversas referências à propriedades de um determinado objeto sem precisarmos referenciá-lo em cada uma delas.
Por exemplo:
var obj = {
a: 1,
b: 2,
c: 3
};
// forma mais "chata", repetindo "obj"
obj.a = 2;
obj.b = 3;
obj.c = 4;
// "atalho" mais fácil
with (obj) {
a = 3;
b = 4;
c = 5;
}
Entretanto, há muito mais coisas acontecendo por aqui do que a simples conveniência de acesso às propriedades de um objeto. Considerando:
function foo(obj) {
with (obj) {
a = 2;
}
}
var o1 = {
a: 3
};
var o2 = {
b: 3
};
foo( o1 );
console.log( o1.a ); // 2
foo( o2 );
console.log( o2.a ); // undefined
console.log( a ); // 2 -- Opa, "vazou" para o escopo global!
No código deste exemplo, dois objetos o1
e o2
são criados. Um possui uma propriedade a
e o outro não. A função foo(...)
recebe a referência de um objeto obj
como argumento, e chama with (obj) { .. }
com esta referência. Dentro do bloco with
, criamos o que parece se tratar de uma referência léxica comum para a variável a
, uma referência LHS para ser mais exato (veja o Capítulo 1), de forma a atribuir-lhe o valor 2.
Quando passamos o1
, a atribuição a = 2
encontra a propriedade o1.a
e atribui-lhe o valor 2
, conforme podemos observar na instrução console.log(o1.a)
logo a seguir. Porém, quando passamos o2
, tendo em vista que este não possui uma propriedade a
, nenhuma propriedade é criada e o2.a
segue sendo undefined
.
Então percebemos um efeito colateral peculiar, o fato de que a variável global a
foi criada pela atribuição a = 2
. Como isso pode ter acontecido?
A instrução with
recebe um objeto com zero ou mais propriedades, trata este objeto como se fosse um escopo léxico à parte e portanto suas propriedades são tratadas como identificadores definidos de forma lexical neste "escopo".
Nota: Embora um bloco with
trate um objeto como um escopo léxico, uma declaração var
dentro deste bloco não terá seu escopo atrelado ao bloco with
, mas sim ao escopo no qual este bloco se encontra.
Enquanto a função eval(..)
pode modificar o escopo léxico ao receber uma string com um código que possua uma ou mais declarações, a instrução with
, por sua vez, cria um escopo léxico totalmente novo a partir do objeto que você passou.
Entendido desta forma, o "escopo" declarado pela instrução with
quando passamos o1
era o1
, e aquele "escopo" possuía um "identificador" que correspondia à propriedade o1.a
. Mas quando utilizamos o2
como "escopo", este não possuía um "identificador" a
, então se aplicam as regras normais de uma busca LHS (veja o Capítulo 1).
O identificador a
não pode ser achado no escopo de o2
, no escopo de foo(...)
, nem no escopo global, então quando a = 2
é executado, resulta na criação da variável global, já que não estamos em Modo estrito (strict mode).
É um pouco alucinante pernsarmos no bloco with
tornando, em tempo de execução, um objeto e suas propriedades em um "escopo" com "identificadores". Mas é a forma mais clara que eu tenho para apresentar os resultados que vemos.
Nota: Somando-se ao fato de não ser uma boa ideia utilizá-las, eval(..)
e with
são afetadas (restringidas) pelo Modo Estrito (strict mode). with
é totalmente proibida, ao passo que várias formas indiretas ou inseguras de se utilizar eval(..)
são proibidas ainda que sua funcionalidade central seja mantida.
Ambas eval(..)
e with
trapaceiam o escopo léxico que havia sido definido no momento da escrita do código ao modificar ou criar um novo escopo léxico em tempo de execução.
Você está se perguntando qual o problema nisso tudo? Se elas oferecem uma funcionalidade mais sofisticada e flexibilidade para o código, não seriam boas funcionalidades? Não.
O Motor do JavaScript possui uma série de otimizações de performance que ocorrem durante a fase de compilação. Algumas delas se resumem a possibilitar que seja feita uma análise estática do código durante a Análise Léxica para predeterminar onde são feitas as declarações de todas as variáveis e funções, de modo que a resolução de identificadores seja menos custosa durante a execução.
Mas se o Motor encontra uma eval(..)
ou with
no código, este naturalmente deve supor que toda sua consciência em relação à localização de identificadores pode ser inválida porque ele não tem como conhecer, durante a Análise Léxica, qual código você pode vir a passar para eval(..)
para então alterar o escopo léxico, ou qual o conteúdo do objeto que você pode vir a passar para with
para então criar um novo escopo léxico para ser consultado.
Em outras palavras, no sentido pessimista, a maior parte das otimizações que poderiam ser feitas não fazem sentido se eval(..)
ou with
estão presentes, de modo que ele simplesmente não executa estas otimizações.
É muito provável que seu código tenda a executar mais lentamente pelo fato de você incluir uma eval(..)
ou with
em qualquer ponto do código. Não importa quão esperto o Motor possa ser em relação a limitar efeitos colaterais destas premissas pessimistas, é inegável que código sem estas otimizações é mais lento.
Escopo léxico significa que o escopo é definido pelo local onde funções são declaradas, através de decisões que são tomadas no momento da escrita do código. A fase de Análise Léxica da compilação é capaz de saber onde e como todos os identificadores são declarados, e portanto prever como serão buscados durante a execução.
Dois mecanismos do JavaScript podem "trapacear" o escopo léxico: eval(..)
e with
. O primeiro pode modificar o escopo existente (em tempo de execução) ao interpretar uma string de "código" que contenha uma ou mais declarações. O segundo cria um escopo léxico totalmente novo (também em tempo de execução) ao tratar a referência para um objeto como um "escopo" e as propriedades deste objeto como identificadores deste escopo.
O problema destes mecanismos é que ambos acabam com a capacidade do Motor de executar, em tempo de compilação, otimizações na consulta de escopo, porque o Motor precisa supor de modo pessimista que todas as otimizações serão inválidas. O código irá ser executado mais lentamente como resultado da utilização de qualquer uma destas funcionalidades. Não utilize-as.